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Ícaro

  • renatotavaresdesign
  • 29 de jul. de 2022
  • 6 min de leitura


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O sensor de presença não funcionou e as luzes do corredor não se acenderam naquela

noite.

Uma escuridão densa envolveu o ambiente e cobriu seu corpo, tão logo ele desceu do

elevador que se fechou rapidamente por detrás dele.

Ficou difícil encontrar seu apartamento, mas um pouco de esforço visual e concentração

facilitaram sua entrada.

Ele colocou delicadamente a chave na velha fechadura da porta e girou vagarosamente,

segurando os penduricalhos do chaveiro para evitar qualquer ruído que acusasse sua

chegada.

Tirou os sapatos sujos de progresso e civilização e os deixou lá fora.

Finalmente entrou em casa.

Seu lar era confortável, não era muito grande nem luxuoso, mas trazia um pouco de

dignidade ao trabalhador, técnico e assalariado da renomada corporação multinacional.

Ao se jogar, todo desconjuntado, no sofá da sala, percebeu que quase deitara sobre o

preguiçoso gato gordo da família.

Seria um verdadeiro desastre caso o felino alvinegro se assustasse e acordasse aos

berros, ou melhor, aos miados, as meninas e a sua esposa.

Com cuidado, pegou o controle remoto debaixo do bichano inerte e ligou a TV.

Desativou rapidamente o som, como era seu costume fazer, para preservar o sono

tranquilo da sua família.

Ficou ali algum tempo, zapeando entre os canais emudecidos, abraçado às almofadas

macias e coloridas compradas naquela viagem de férias no litoral.

O poder hipnótico da luz azulada e fantasmagórica que bruxuleava silenciosamente,

emitida pelo aparelho de 60 polegadas (presente de aniversário de casamento dele para

sua querida esposa), trouxe-lhe vagarosamente o sono.

Mas antes de começar a cochilar, levantou-se e foi até a cozinha à procura de alguma

coisa para comer, pois não tinha almoçado na empresa e chegou em casa com um pouco

de fome.

Abriu a geladeira, analisou as opções disponíveis e ficou na dúvida entre um pedaço de pizza fria de ontem, uma lustrosa maçã já mordida por uma das crianças ou o queijo magro e totalmente sem graça da dieta da sua mulher.

Acabou optando mesmo pela garrafa de leite gelado que, por um instante, pensou em beber diretamente no bico, mas refletiu melhor, riu de si mesmo e desistiu de fazer tal porcaria.

Pegou um copo deixado na pia, lavou displicentemente, encheu até a metade com o insosso líquido branco e bebeu tudo de uma golada só.

Voltou à sala para desligar a televisão, fez um afago no gato e seguiu para o seu rotineiro ritual noturno.

Apesar do frio da noite, característica daqueles meses, a preguiça e o cansaço não superaram o cuidado que ele sempre teve com sua família.

Seguiu para o banho onde, todas as noites, tratava de livrar-se das sujeiras reais e psicológicas adquiridas durante um dia intenso no trabalho e acumuladas no trajeto de volta pra casa, transitando entre uma multidão de desconhecidos nas ruas da metrópole.

Tirou o uniforme pardo, colocou no balaio de roupas sujas e entrou no banheiro, onde uma ducha quente o aliviou das mazelas cotidianas da cidade e dos aborrecimentos, rotinas e obrigações da empresa.

O conforto e bem estar proporcionado pela água aquecida caindo sobre seu corpo cansado, naquela noite especialmente fria, acalmou seus pensamentos.

Mas, apesar do prazer e alento proporcionado por aquele banho, algum motivo o fez lembrar-se de que seu elemento predileto, o que realmente trazia paz e felicidade para sua alma, sempre foi o ar.

Pensou no quanto gostava de sentir o vento fresco no seu rosto, de encher seus pulmões com oxigênio puro, de passear em ambientes amplos, de deitar em campos abertos ao ar livre para observar a inatingível imensidão do céu azul.

Achou estranho ter tais pensamentos, aparentemente sem motivo algum, naquelas altas horas da noite, bem no meio do banho que acabava de tomar.

Agora, já devidamente banhado, permitia a si mesmo dar um beijo de boa noite em suas tão queridas filhas.

Um mesmo quarto alojava as maiores preciosidades da sua vida, aquelas duas crianças que dormiam ali, inocentes e tranquilas, privilégio concedido somente a quem não tem grandes problemas e nem preocupações para lhe atrapalhar o sono.

Deteve-se no quarto por alguns instantes observando a aparência angelical daquelas criaturinhas, enquanto tentava compreender o imensurável amor que sentia por elas e que chegava a lhe doer no peito.

Beijou e abençoou cada uma, ajeitando delicadamente os cobertores sobre elas antes de sair, deixando aceso o abajur em forma de unicórnio e de luz amarelada, cumprindo, como combinado, o acordo que tinha feito com elas.

Entrou com cuidado no seu quarto e, ao primeiro movimento da porta, foi recebido em festa por sua cachorrinha de pelos arrepiados, que abanava freneticamente o rabinho, ainda acordada à sua espera, como fazia em todas as noites anteriores.

O cãozinho corria, pulava e arranhava desesperadamente a perna do querido tutor que chegara, tamanha era a felicidade que sentia e precisava demonstrar.

Tudo isso sem emitir um único latido sequer, pois tinha sido adestrada de modo a não acordar as outras pessoas da casa durante a madrugada.

Aquela demonstração diária de fidelidade e amor incondicional, sem exigir nada em troca, ainda surpreendia o cuidadoso tutor, mas também lhe fazia muito bem.

Ele pegou a pequena cadelinha no colo, acariciou carinhosamente as costas e a barriga dela e, só então, a colocou para dormir na confortável almofada que ficava bem ao lado da cama do casal.

Sua casa era seu reino, seu abrigo e seu refúgio.

E nela reinava também sua esposa, linda como sempre, uma majestosa rainha, mesmo sem nenhuma maquiagem, sem nenhum traje de gala, sem nenhuma joia real, mesmo dormindo serenamente, sem perceber estar sendo afetuosamente observada.

Um sentimento muito bom tomou conta dele quando constatou que, mesmo depois de tanto tempo de vida em comum, juntos nas alegrias e nas dores, ainda conservava um imenso amor e carinho pela companheira, como no início do relacionamento.

E a recíproca, com certeza, era verdadeira.

Estava especialmente feliz e tranquilo naquela noite.

Deitou, tentando deixar a mente vazia para evitar a proliferação dos pensamentos sobre problemas cotidianos e para preservar aqueles sentimentos tão bons acumulados desde sua chegada em casa.

Naquela noite, estava disposto a afastar todos os estranhos e recorrentes sonhos que vinham lhe atormentando o descanso com significativa frequência, em tantas outras madrugadas passadas.

Talvez por esse motivo, em poucos minutos já havia caído profundamente no sono.


Amanheceu.

Acordou tranquilo e descansado como há muito tempo não acontecia.

Sentiu-se estranhamente diferente, pois não se lembrava de ter sonhado com nada, nem sonhos ruins, nem sonhos bons, apenas uma noite completa e satisfatória de sono.

Ainda era bem cedo e todos na casa, tanto as pessoas quanto os animais de estimação, ainda dormiam pesadamente quando ele seguiu para o banheiro na intenção de se aprontar para o trabalho.

Porém, ao passar pelo corredor, constatou algo inacreditável, uma imagem surreal e inexplicável refletida no espelho, uma visão que não imaginaria nem mesmo naqueles sonhos dos quais tentava se livrar anteriormente.

Bem ali, naquela exata manhã, num dia comum como outro qualquer, quando se arrumava para ir trabalhar, ele, ao olhar seu reflexo no espelho do corredor (por mais impossível e improvável que pareça) constatou que um par de belas e poderosas asas haviam crescido em suas largas costas negras!

Uma forte sensação de enjoo e tontura quase o fez perder a consciência, mas respirou fundo e cerrou os olhos, tentando manter-se calmo e permanecer de pé.

Aquilo tudo era absurdo e fantástico demais para se acreditar, porém, por algum motivo, não em sua mente, mas ali bem dentro de sua alma, ele sabia que tudo era verdadeiramente real.

Uma profusão de ideias, palavras, imagens e significados invadiram sua mente criando uma mistura de confusão, medo, dúvida e euforia.

Liberdade, egoísmo, cotidiano, oportunidade, loucura, incerteza, aventura, frustração, rotina, lucidez, alegria, destino, solidão, escolha, amor, família, eu, limite, abandono, nós, compreensão, fuga,…

Por alguns instantes que lhe pareceram uma eternidade, hesitou.

Mas, depois de se livrar completamente de seus pensamentos lógicos e cartesianos, com a cabeça vazia, livre, leve e solta, como se estivesse embriagado pela excitação e pelo excesso de possibilidades que se abriam para ele, deu total atenção às vozes do seu coração e aos anseios da sua alma.

Agora, sem nenhum outro peso sobre seus ombros a não ser o das vistosas e fortes asas que lhe brotaram milagrosamente das costas, teria de dar um passo adiante.

Antes que seus amores despertassem, abriu a janela do seu apartamento no 13º andar, subiu no estreito parapeito de madeira envelhecida, respirou fundo absorvendo o ar viciado pela fumaça dos automóveis que transitavam tão lá embaixo e sentiu um breve arrepio percorrendo todo seu corpo, sem conseguir identificar bem a causa.

Seria pelo frio da brisa matinal, seria pelo desafio da inédita oportunidade que lhe fora oferecida, seria pelo apego a seus entes queridos ou seria mesmo o medo da novidade e da mudança?

Já não mais lhe interessava a resposta.

Naquele momento, não olhou mais para trás, tinha direcionado suas vistas somente para além da moldura da velha janela de madeira, que ainda insistia em lhe oferecer sempre o mesmo horizonte cinzento e pétreo da cidade que tanto o oprimia.

Mas ele mirou para depois daquele triste limiar, contemplando o longínquo e sedutor céu azul que se apresentava generosamente ilimitado, esperando para ser alcançado e explorado pelo novo aventureiro alado.

Por fim, deu um passo adiante e atirou-se destemidamente em queda livre, de olhos fechados, rumo a sua nova e audaciosa jornada, sem arrependimentos nem temores, pois tinha deixado para trás um belo e digno legado, abrindo o caminho para um novo futuro.

A partir de agora, graças ao fantástico acontecimento da noite passada, poderia experimentar a inédita e libertadora sensação de voar por si mesmo, impulsionado pelas suas próprias asas, em busca dos seus sonhos, rumo ao céu, rumo ao sol, rumo ao infinito...

 
 
 

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