Abiku
- renatotavaresdesign
- 29 de jul. de 2022
- 4 min de leitura

Cinco e meia da manhã, o despertador do celular gritou até parar, ele sabia que já estava
atrasado, mas não queria se levantar da cama.
Mas quem disse que ele podia querer alguma coisa?
Ali era vida real!
Levantou correndo, saiu do barraco em direção ao quartinho que abrigava o simples,
mas bem acabado banheiro e começou a se arrumar.
Abiku era um negro jovem, bonito, alto, esguio, olhos claros, lábios grossos, com um belo sorriso quase permanente em seu rosto.
Era vaidoso e tinha estilo.
Rapidamente vestiu a camiseta larga e sobre ela o blusão com capuz, também largo e colorido.
Colocou a blusa por dentro da calça na parte da frente e solta na parte de trás, para
mostrar a fivela do cinto vistoso, no pulso o chamativo relógio comprado na loja do
chinês da esquina e, no pescoço, as correntes grossas e brilhantes.
Pra finalizar, pensou em colocar um boné com estampa estrangeira, virado para trás
completando o figurino estiloso, mas logo desistiu da ideia.
Abiku tinha orgulho do seu cabelo black e armado.
Era um símbolo do poder de seu povo, tinha ouvido ou lido isso em algum lugar e
nunca mais se esqueceu.
Seu cabelo, sua cor, sua raça, sua história, sua identidade.
Estava pronto e mais atrasado do que nunca.
Não dava mais tempo de tomar café com pão de ontem e margarina, mas o beijo e a
benção de Dona Dorinha eram sagrados antes dele sair de casa.
Passou correndo no terreiro onde ela ajudava e recebeu o carinho daquela
mulher tão especial que, apesar dos poucos recursos financeiros, havia adotado e criado,
dentro das possibilidades dela, com todo amor e cuidado, não só ele, mas também outras
seis crianças abandonadas.
Feito tudo isso, agora era correr para se atrasar o mínimo possível.
Pegou a bike, tratada carinhosamente de magrela e desceu o morro pelos estreitos becos e vielas do aglomerado de barracos rumo ao centro da cidade.
Seu chefe era boa gente, um cara legal mesmo, mas reclamava sempre sobre qualquer tipo de atraso e Abiku não queria perder aquela rara oportunidade de trabalho, até porque o dinheirinho ganhado como atendente na loja de 1 e 99 ajudavam bastante no orçamento da família e também nas despesas extras com os estudos.
Mesmo sendo um aluno cotista (cota não é esmola, ele sabia muito bem disso), tinha que fazer milagre com seu dinheiro e alternar periodicamente os pagamentos das despesas de transporte, livros, alimentação e outras contas que eventualmente aparecessem.
Enquanto pedalava forte e aceleradamente morro abaixo, Abiku se lembrava do fim de semana anterior, tão bom como poucos que já haviam passado em sua vida.
No sábado à tarde, depois do trabalho, teve churrasquinho na laje com a galera, cervejinha gelada, pagode, sertanejo, forró, batalha de rimas e até um inofensivo e relaxante “cigarrinho do capeta”.
Depois, um gostoso cochilo em casa e, mais à noite, a curtição com a turma no baile funk bombando na quadra da comunidade, onde o som e a azaração com as novinhas seguiu até altas horas da madrugada.
Já no domingão, apesar da ressaca e da sonolência, foi mantido a clássica partida de futebol da favela: “Arranca Toco versus Pés Inchados”, no campo de terra do alto do morro, pra distrair, exercitar e desintoxicar o corpo.
Naquele final de semana tão agradável, um delicioso almoço coletivo foi servido no terreiro de Mãe Jandira, onde todos eram bem vindos e comiam com fartura a refeição preparada cuidadosamente a várias mãos, por várias mães que não faziam nenhuma distinção entre qualquer um dos filhos que ali estavam.
Com o susto ao passar em um buraco, Abiku dispersou as lembranças, caiu na real e viu que ainda estava bem atrasado.
Meu patrão vai me matar, pensou ele.
Encheu os pulmões de ar e pedalou o mais rápido possível, aproveitando o embalo do asfalto que ajudava a ganhar tempo e velocidade, pois já havia chegado no centro da cidade.
Uma última lembrança lhe veio à mente: esta semana era o aniversário de Dona Dorinha e ele tinha que dar um jeito de comprar um presente para sua querida mãe do coração.
...
E tudo ficou escuro.
Um frio estranho tomou seu corpo.
Os sons e as vozes ao seu redor foram sumindo lentamente.
Estava difícil respirar, estava difícil permanecer ali, estava difícil continuar vivo…
...
Abiku agora era a vítima de uma bala perdida num confronto entre traficantes e milicianos, que exploram os cidadãos e agem impunimente, criando um governo paralelo nas comunidades…
...
Abiku agora era um jovem desaparecido para sempre numa operação policial que invadiu o morro, na justificativa de estar em “missão extraoficial e secreta” para combater o crime organizado e cujos policiais responsáveis foram afastados e estão em liberdade, cumprindo atividades administrativas …
...
Abiku agora era um ciclista atropelado por um poderoso político que dirigia embriagado, em alta velocidade e sem habilitação, que foi indiciado por “homicídio culposo” onde “não existe a intensão de matar”… e vai ter sua pena convertida em doação de cestas básicas e trabalho social e comunitário…
...
Abiku agora era um negro covardemente espancado na rua, sem motivo algum, por jovens universitários, suprematistas brancos e neonazistas, que tem os mais caros advogados contratados por suas famílias ricas para defender a tese de que eles não são violentos, que eles não sabiam o que estavam fazendo e não tinham ideia das consequências de seus atos, conseguindo a absolvição ou penas mínimas para seus clientes…
...
Abiku agora era um pobre preto da comunidade, assassinado dentro de uma loja por um suposto “cidadão de bem”, sem porte de arma, que o confundiu com um assaltante por causa da aparência e decidiu atirar várias vezes para proteger sua “propriedade” e seu “patrimônio”, alegando legítima defesa, para permanecer devidamente armado e em liberdade…
...
Abiku agora é mais uma notícia na mídia comercial, mais um caso para as organizações pelos direitos humanos, mais um número nas frias e inúteis estatísticas governamentais, mais um corpo pobre e preto que cai.
Abiku é mais um jovem negro que tem seu futuro cancelado, mais um neto, um filho, um pai, um irmão, um marido, um companheiro, um amigo, um cidadão, um ser humano que é ceifado da convivência dos seus pares.
Abiku é apenas mais uma história que, para o sistema, nem deveria ser contada.
Conforme a tradição Iorubá, algumas crianças nascem e morrem várias vezes, ainda jovens, presas entre a vida, a morte e o mundo espiritual.
São as crianças abiku.
Literalmente, abiku significa “nascido para morrer”, porque “a” significa nós, aquele que, “bi” significa nascer e “ku” significa morrer.
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